Naquele dia ele desceu as escadas lentamente, meio desconfiado, mas sabia o que ia buscar. E naturalmente ele se trajava mau, mas naquele dia não… não naquele dia.
Desceu as escadas, fumando e com uma xícara fumegante de café puro preto com pouco açúcar. Dizia que o açúcar o deixava agitado. Algumas pessoas diziam que era por conta das incontáveis doses de café durante todo o dia. Mas ele insistia... era o açúcar.
Pegou o jornal, olhou em volta, deu uma última tragada, tomou de um único gole o resto do café e voltou correndo pelas escadas. Fechou a porta rapidamente, trancou-a, encostou-se nela de costas e, num suspiro de alívio, começou a rir. Reclinou-se até o chão, sentou com as pernas bem juntas, com os joelhos à altura dos olhos e começou a chorar.
As horas avançavam. O dia acontecia fora das paredes da sua casa, mas ele não podia sair. Não queria, na verdade. E ficava em casa, vagando de um cômodo para outro, verificando se as janelas estavam bem trancadas, se as cortinas deixavam espaço para que alguém, lá fora, verificasse o seu interior.
Abriu o jornal pacificamente. Antes, embebeu um pano velho em álcool, passou por todo o plástico que protegia o jornal e, de luvas, retirou o saco. Com a mesma rapidez que se moveu até o lixo, arrancou as luvas pelo avesso, embolou-as e atirou na churrasqueira que ardia em brasa.
O jornal era do dia anterior, mas pra ele não era um problema. Já não sabia que dia da semana estava, sequer sabia o dia do mês. Quando abriu, viu a imagem de guerras, bombas explodindo, pessoas atirando e a manchete em letras garrafais dizendo que, o Oriente Médio estava pondo-se em pé para guerras e batalhas contra os Estados Unidos. Logicamente não nestas palavras, porém a idéia que ele teve fora exatamente esta. De que o Oriente Médio estava pronto para agir.
Estava ansioso para ver qual seria a manchete do próximo dia, se de fato a guerra eclodiu ou não. Sentava-se contraído na poltrona da sala escura, roçava as mãos nas pernas impacientemente, verificava a todo instante a movimentação na rua pelo olho-mágico da porta de entrada. A cada passo verificava as janelas e as cortinas. Alguém vai entrar, alguém vai entrar. Alguém vai entrar e acabar com tudo. Desta vez vai acabar com tudo. Alguém vai entrar. Pensava ele, sussurrando meias palavras, mexendo debilmente os lábios, andando de um lado para o outro da sala, fumando o seu cigarro.
O café esfriava na xícara e ele tomava-o de goles rápidos, enxendo a boca e engolindo sem sequer saborear o café requentado. O cheiro de café e cigarro pela casa espalhava-se numa mansidão tão contrária à agitação do rapaz.
Olhou pelo olho-mágico novamente. Viu alguém atravessando a rua para caminhar pela calçada do seu lado da rua. Ficou apavorado. É agora, é agora. Estão vindo. É agora. E o que eu faço agora? Oh céus, e agora? Acendeu outro cigarro, fumou abstinadamente como se seu filho estivesse nascendo naquele momento. Correu para o quarto no segundo andar. Pelas escadas, tropeços e tombos eram corriqueiros. As canelas já marcavam várias manchas roxas pelas batidas. Correu para o quarto, trancou a porta, empurrou a cama em frente à porta e começou a gritar.
De repente silêncio. Respiração ofegante, coração acelerado, suor frio, cigarros e mais cigarros. Ouviu a porta da sala se abrir vagarosamente. Seu coração parou por um segundo e voltou a bater com a força de um machado partindo cavacos e toras. Passos. Passos pela sala. Imaginou se a pessoa que entrava tinha, pelo menos, limpado os sapatos. Limpara a casa pela manhã e não iria ficar nada contente se estivesse com sapatos sujos.
Os passos avançavam vacilantes como passos à procura de algo. Passos que não sabe exatamente pra onde vão, mas que seguem à frente. E ele no quarto, desesperado, tendo a sensação de estar sendo vítima de uma parada cardíaca. Imaginou que, se tivesse um aneurisma, ele certamente explodiria seu cérebro naquele momento.
Ele está subindo, está subindo, e agora, meu deus, o que faço? Ele está subindo. Afinal, quem deverá ser, meu santo? Está vindo e eu sei que desta vez fará o que tem de fazer. Ele irá me matar. E está vindo, está subindo as escadas. Pensava e gemia enquanto ouvia os passos subirem as escadas ainda muito calmamente.
Estava tendo uma reação de extrema descarga de adrenalina. Já não conseguia conter seus pensamentos, a respiração cada vez mais acelerada, cada vez mais apressada, cada vez mais curta. Começava a faltar oxigêncio em seu sangue que irrigava o cérebro com um possível aneurisma. Tontura, vertigem, sensação de desmaio, sentia de tudo naquele momento. E os passos avançavam.
Começou a ficar com cada vez mais medo daqueles passos desconhecidos. E eles vinham em sua direção enquanto ele dava um passo pra trás cada vez que ouvia o sujeito dar um passo à frente. Decidiu. Ainda desesperado e ansioso, mas a decisão fora tomada.
Os passos vinham pelo corredor e ele cada vez mais amedrontado. Será que irá conseguir empurrar a cama? Mas a porta está trancada, terá que arrombá-la. E empurrou também o seu armário velho de bugigangas prensando a cama contra a porta.
Apressou-se em pegar caneta e papel e começou a escrever. Relatou o ocorrido, com detalhes minuciosos e os motivos de tudo que aconteceu. Escreveu também à mãe, ao pai, aos dois amigos que sempre o socorriam com dinheiro e comida e à vizinha que pagava o gás. Escreveu sobre as pessoas que andavam rondando sua casa e do porquê o rondavam. E despediu-se brevemente, sem rodeios, nem afetos, apenas se despediu.
Os passos continuavam em direção ao quarto enquanto ele terminava de rabiscar as folhas e de repente parou. Ouviu-se pássaros alçarem vôo, cães latirem e o silêncio cósmico na penumbra do quarto. Os passos não voltaram, não seguiram em frente, apenas cessaram com o disparo da arma. Não pararam porque o medo os invadiu; pararam porque seu inventor sumiu. Pararam porque já não tinham para onde ir, nem a quem buscar. Já não havia mais quarto, porta ou alguém a quem invadir.
Surgiram do além e esvaiu-se com a mesma rapidez que a vida se esvanesceu naquele quarto. Ele perseguia a ele mesmo. Ele inventava, ele criava e convencia-se de que não eram invenções, tampouco criações dele mesmo. Era pessoas reais, na sua realidade. Eram pessoas que o cercavam, que o rondavam, que o perseguiam. Mas tudo acontecia apenas no seu micro-mundo de forma que, das janelas, não se via o além-mar. E a luz do dia já não era vista, senão quando ele saia pra buscar o jornal que agora irá se acumular por dias nas escadas da sua casa. E a sua casa não será aberta, não terá ninguém que a vigie, tampouco alguém que escore as portas com cimento e tijolos. Não haverá mais ninguém.
Naquele dia ele sabia o que estava por vir. Sabia que a guerra do Oriente Médio iria eclodir e sabia que seria declarada por ele próprio. Aliás, nem sabia, ou não queria lembrar, mas a guerra havia sido declarada há muito, muito tempo atrás. Contra ele mesmo. E sabia que naquele dia ele precisaria estar bem trajado, bem apresentável, de forma respeitosa e elegante, para que, no mínimo, pudesse causar uma boa impressão. Uma boa impressão seja lá pra quem for. Embora soubesse quem iria vir buscá-lo mais tarde.
Daquele momento em diante, toda a névoa de perseguição que pairava sobre ele também sumiu com o tiro. A vida escoou e não houve tempo para represá-la. Não houve sequer tentativas de reparos. O tiro foi a redenção. Antes tomado pelas próprias mãos a ser tomado pelas mãos do outro. Mas era um outro que era sua própria extensão. Uma extensão inexistente. Mas um inexistente que existia, decerto.
E tudo acabou naquele momento. No momento do disparo. No momento que o cão latia sem saber porque. No mesmo momento que o pássaro assustado voou para longe. No mesmo momento que os passos voltaram para a velha e pequena caixa de surpresas.
(Mateus Guedes)